sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Relatos perversos de uma mente doente - Parte I

John não era diferente, mas também não se pode dizer que fosse igual às outras pessoas. Tinha as suas semelhanças e os seus contrastes, e isso tornava-o especial à sua maneira. Perturbado mentalmente, por assim dizer.
As suas noites eram os seus dias, e por conseguinte, os seus dias eram as suas noites, e era nessas alturas que os acontecimentos perturbadores mais o assolavam. E caía então num sono profundo, toldado pela paranóia e ilusões criadas pela sua mente doente, onde a realidade não se distinguia já dos seus sonhos.

24 de Março.

'Mais do mesmo. Os meus ataques têm-se intensificado ao longo desta semana. Hoje foi o quarto.
Lembro-me que eram 15h23, quando acordei sobressaltado do meu sono. Levantei a cabeça e olhei o relógio na mesa de cabeceira, para ver as horas. Dormia há pelo menos 4h. Acordei com a habitual secura na boca, pelo que me estiquei completamente para conseguir agarrar a garrafa de água pousada à beira da cama. Tentei regular os batimentos cardíacos respirando pausadamente. Acendi o pequeno candeeiro que se encontra junto à cama. No meu íntimo sabia o que ia ver de seguida, mas mesmo assim fi-lo. Olhei em volta e constatei que a penumbra que envolvia o quarto era exactamente a mesma de ontem, e do dia anterior, e de todos os outros dias em que estes incidentes acontecem. O quarto é desprovido de mobília desnecessária, havendo apenas um armário, uma cama, uma mesa de cabeceira, e A poltrona. Foi aí que o meu olhar se demorou, tentando descortinar qualquer presença humana. Já nem respirava para não perturbar o silêncio que se abate sobre a divisão sempre que isto acontece, e fiquei à escuta. Até que ouvi. Uma respiração pesada e pausada fazia-se notar, mas não era a minha. A Entidade (não sei o que mais lhe hei de chamar) erguera-se a custo, apoiando-se numa fina bengala castanha. Trajava elegantemente com roupas de outro tempo, ostentando uma grande barba que lhe ocupava a maior parte da face. Aparentava ter mais de setenta anos, muito mais velho que a Entidade de ontem à tarde. Procurara incessantemente a sua cigarreira e fósforos nos vários bolsos do seu longo casaco verde escuro, até que por fim acendeu o pequeno tubo de tabaco. Uma névoa cinzenta e aromática encheu a divisão, o que tornou o momento ainda mais desconcertante. Ele "olhava-me". Não me podia olhar verdadeiramente, pois faltavam-lhe olhos como a todos os outros que se sentavam naquela poltrona. Em vez de olhos tinha dois orifícios negros sem fundo que faziam as vezes dos olhos. Ele não me via, mas sabia que eu ali estava. "Olhava" em volta como se procurasse algo no quarto, enquanto inalava e exalava o fumo do seu cigarro, sem nunca sair do sítio. Quando acabou, tossiu secamente e escarrou no chão um espesso líquido amarelo avermelhado que lhe obstruía a garganta. Quando se recompôs fixou-me inexpressivamente. Foi nesse momento que o medo se apoderou de mim. A Entidade não falava nem tão pouco mexia os lábios, e no entanto conseguia ouvir uma voz que sabia ser sua, a ecoar dentro da minha cabeça. Proferia repetidamente estas duas frases enigmáticas, num tom tão sombrio como a penumbra que adornava o quarto: «Desde sempre todos morrem. Chegou a tua hora.». Já não distinguia as suas palavras, tal eram as batidas do meu coração que se faziam ouvir nos meus ouvidos. Mas foi então que tudo ficou de novo silencioso. Levantei a cabeça e encarei a Entidade, não num acto de coragem e confronto, mas num acto de resignação e foi então que vi. Ele sorria maldosamente, exibindo as duas fileiras de dentes podres amarelecidos do tabaco, enquanto que com a mão reproduzia a forma de um revólver apontado a mim. Recostei-me na cama, envolvendo-me com os lençóis e almofadas numa tentativa desesperada de escapar ao que pensava ser a minha morte. Gritei que nem um louco para abafar o riso de troça daquela criatura, encolhendo-me o mais que consegui em posição fetal. Já não tinha controlo sobre os meus músculos tal era o pânico que se havia instalado em mim. Estava completamente hirto, naquela posição, quando o silêncio voltou de novo à divisão. Com os olhos tentei procurar a presença, ou não, da Entidade. Ainda se encontrava em pé, junto à poltrona e apoiado na velha bengala com o suposto "revólver na mão". Já não tinha o sorriso rasgado nos lábios, mas não deixara de sorrir. Poucos segundos depois, desenhou-se-lhe nos lábios uma palavra. Não saiu qualquer som da boca da criatura nem ouvi qualquer som na minha cabeça, contudo entendi bem a palavra. «Morre». '

Excerto da gravação da consulta do dia 24 de Março, à noite e em casa do paciente John Clayworth.

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