sábado, 3 de janeiro de 2015

Relatos de uma mente doente - Parte II

«Tudo o que conseguia ver era uma imagem embaciada e turva da realidade. Um par de luzes intermitentes perfurava a neblina da minha vista e alucinava-me. As paredes claras, pelo que percebi, formavam um extenso corredor pelo qual me deslocava, não pelo meu próprio pé, mas havia algo que me transportava numa posição horizontal e pouco confortável. Algo que prendia o corpo contra uma superfície acolchoada e áspera. Pessoas em uniformes brancos não identificáveis empurravam o meu meio de transporte: uma simples maca igual a tantas outras, especulei eu.
O longo corredor, o qual imaginei com negros azulejos bem polidos e que constatei não ter qualquer adorno nas paredes, constituía o percurso que separava a entrada daquele hospital de algum outro lugar naquele edifício. Apercebi-me disso depois de me terem empurrado, sempre num passo calmo e despreocupado até ao fim desse túnel branco. Uma porta encerrava aquele corredor. Nessa altura a curiosidade e o medo impeliram-me a analisar a porta. Os vidros martelados e tingidos de cinzento não deixavam antever nada do que pudesse estar do outro lado. A porta encontrava-se fechada. Acima desta um letreiro: Ala 2. Fiquei sem perceber o seu significado. Olhei em volta, sempre com a cabeça empurrada contra o colchão. Transpusemos aquela porta, e eu continuei a olhar, agora com maior clareza. O tecto continuava igual. As mesmas luzes permaneciam intermitentes à minha passagem, contudo as paredes não eram de todo idênticas. Estranhamente, de tempos a tempos pedaços de parede transformavam-se momentaneamente em celas de reclusão. Até então, apenas as suas pesadas portas brancas com pequenos gradeamentos nos separavam. Não se ouvia coisa nenhuma para além do ruído de fundo dos eixos das rodas, um chiar fininho e perturbador que provinha daquela cama deambulante. Assustei-me a sério. Estava preso a uma maca, em sítio indeterminado e alguém me encaminhava, pensava eu, para uma cela similar aquelas que tinha visto. Não sabia o porquê. Aliás, não sabia de nada. Tinha já tentado recordar qualquer coisa que fosse, mas as tentativas foram em vão. As cortinas das minhas memórias estavam corridas, e eu nada podia fazer. Assim permaneci, num pânico desolado. Parámos.
A paragem foi abrupta, o que me casou um calafrio. O meu coração bombeavam sangue numa frequência elevada e eu começava a ficar agitado. Debati-me como um louco, - atentem na ironia de toda esta descrição, - contra as amarradas que me sustinham o corpo naquela posição, inutilmente, pois nada havia a fazer. Um som metálico atravessou o ar e a pesada porta branca, que a mim destinada, abriu-se. Penetrei na sala com a ajuda daqueles indivíduos e estaquei junto a uma das parede do meu lado direito. Alguém se aproximou de mim. Uma mulher. A minha breve análise facial disse-me que deveria estar na casa dos cinquenta. Não lhe dava mais. As suas feições eram carregadas e o seu olhar era do mais sério que vi até hoje. Usava um uniforme branco e sobre as mãos umas luvas de latex, também elas brancas. A senhora acercou-se de mim, parando à minha beira. Não conseguia ver com clareza o objecto que ela trazia na mão esquerda, mas no momento seguinte logo me apercebi. Com a mão direita que estava disponível desabotoou o botão do punho da minha vestimenta, arregaçando-me a manga até cima. Nesse instante pude olhar, ainda que a custo, para baixo, - esteja subentendido que me encontrava numa posição tal que me era impossível mover a cabeça com a liberdade necessária para obter um panorama mais completo e detalhado,- e olhar pela primeira vez de relance para a minha vestimenta. Trazia no corpo um uniforme amarelo, apenas com um número estampado em branco na fronte: 71. Não havia separação entre a parte anterior e posterior do meu fato. Desconhecia o que aquele número significava, porém achava que era o que o identificava, ali dentro. Foi depois desta breve inspecção à minha indumentária que me apercebi que uma seringa, contendo um conteúdo translúcido, estava a ser preparada por aquela senhora. Entregou o utensílio a alguém que se encontrava ali, mas fora do meu campo de visão, e retirou um elástico comprido e alaranjado do bolso da bata. Com a mestria de uma enfermeira experiente, - calculei eu que fosse, sempre na minha pobre ignorância,- atou o elástico com força, um pouco acima do meu cotovelo. Enquanto tomava de novo posse da seringa, sentia-a a bater compassadamente com o médio e o indicador, numa zona específica do meu braço. Quando as batidas pararam foi quando senti o pequeno instrumento a perfurar ao de leve a minha pele e a injectar o que quer que fosse no meu organismo. Estava com medo. Nada fazia o devido sentido para mim, e desesperava por explicações. Intrigava-me sobre a realidade e o sonho. Estava confuso e perdido no terror das minhas inseguranças no momento que o frio me subiu pelo braço acima, a uma velocidade alucinante. A minha nuca esfriou por um breve instante. Depois disso, adormeci.»

Paciente 71.
Primeira parte do tratamento.
Registo dos acontecimentos do dia anterior por escrito, por parte do paciente. 
3 de Maio, dia seguinte à sua chegada ao Hospital. 

Mr. John foi internado no Hospital Psiquiátrico no qual eu fiz o meu internato, e o qual frequento regularmente na minha busca do conhecimento total sobre a mente humana. A minha sugestão foi aceite de bom grado pela família mais próxima do paciente. A sua situação agravara-se nas últimas semanas. Os seus comportamentos revelaram-se perigosos para si próprio. O seu próximo passo poderia-o ter deixado a uma curta distância do abismo da auto-destruição. Todos podem ser tratados, segundo acho.  Agora que o tenho a meu cuidado, terei a oportunidade de o estudar e por fim, curá-lo. Devo trazê-lo de volta da  escuridão na qual ele se encontra envolto, impotente. O paciente encontra-se sedado. Deixei-o na sua cela poucos minutos após a entrevista.
Esta foi a pequena exposição do paciente tendo em conta os acontecimentos do dia de ontem, a sua chegada ao hospital. Acredito que desta maneira o paciente aos poucos retome a sua consciência sobre o que é verdadeiro nisto tudo. Encontra-se ainda em negação, segundo me pareceu durante a consulta que levei a cabo hoje de manhã. Acredita que se encontra preso numa das suas ilusões, convencendo-se nada disto é real, como eu próprio lhe tinha dito sobre as suas recorrentes alucinações passadas. Temo que apenas o tempo o pode ajudar a acreditar de novo que isto é a verdadeira realidade, a nossa realidade. Talvez nessa altura o possa verdadeiramente ajudar a voltar ao que era antes, o pacato John Wayworth.

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